No “Almanaque Anos 70” a autora, a jornalista Ana Maria Bahiana, diz que quem viveu aquela época está condenado a não se lembrar dela. Isso porque se tratou de um tempo de experiências e uma despreocupação em registrar o que fosse. “Viver é melhor que sonhar”, cantava Elis, alertando para os “perigos na esquina”.
Como eu era então pré-adolescente, teria ainda mais motivos para não lembrar, não fosse o período em que conheci São Carlos e passei a me interessar pelas coisas da cidade. E o principal veículo que ligava minha casa aos acontecimentos da “Cidade Sorriso” era o rádio. Ali estavam as notícias, os programas de esporte que despertaram a simpatia pelo time da cidade, as músicas.
Um velho aparelho GE permanecia ligado o dia todo e, acredite, concorria com a programação da TV. Entre acordes de um violão, um de meus irmãos, o Zé, impostava a voz e simulava locução. Pudera: no rádio as coisas aconteciam inclusive por causa de vozes poderosas e únicas dos locutores.
As duas grandes rádios locais, a Progresso e a São Carlos, traziam programações variadas, se rivalizavam nos comerciais, mas no conteúdo se assemelhavam e, por vezes, se completavam. Só de passar perto dos prédios onde ficavam estúdios das emissoras era uma emoção por imaginar que daquelas antenas saíam todos aquelas canções que a gente queria ouvir.
A Rádio Progresso tinha programas como o Peça e Ouça, Bolsa do Disco, Pesquisa Direta do Disco, Ave Maria das Seis, RP Notícias, Sertanejo do Nho Mércio. A Rádio São Carlos atacava com o Show da Manhã, Você faz o Programa, Músicas dentro da Noite e outros tantos que faziam o “auê” da cidade. Como o rádio ainda era simplesmente o rádio AM, o som personificado das duas emissoras ecoava pelo comércio da cidade e pelas residências em clima de Fla-Flu.
Lembro-me de nomes que foram recordados por um amigo, o radialista Luis Augusto Zoia, que eu viria a conhecer pessoalmente muito depois, quando muita coisa bacana já se via “pelo espelho na distância se perder”, como dizia Roberto Carlos na canção “As curvas da estrada de Santos”.
As lembranças do rádio são-carlense naquela fase remetem a um desfile de figuras de almanaque, como Vicente Camargo – radialista e ator, o homem do “Informativo Progresso”, Geraldo Eugênio – genial e inventivo apresentador -, Paulo Afonso, Jota Ribeiro (inesquecível), Afonso Celso Gobato (e seu pioneiro RP é Notícia e o romântico “Melodias da Recordação”), Romeu Aversa – cronista notável -, Jamir Schiavone, Maurício Carlos Ruggiero, o “compadre” Syllas Rosa, Celso Capeline, Jota Silva, Vanderlei de Almeida, Paulinho Gomes entre outros tantos. Gerson Marcos era o “discotecário” da Rádio Progresso. O da São Carlos era Eduardo Yamada. O “discotecário” (existe termo mais anos 70?) era uma espécie de “mago” da emissora.
Os anos eram de chumbo, mas o ambiente numa rádio estava mais para o psicodélico. Os programas tinham participação popular por meio de cartas e por telefone. As músicas obedeciam ao hit parade com lista fornecida por empresas especializadas da Capital. Mas o ouvinte interferia na programação. E essa era a alegria de meus colegas de escola no Álvaro Guião e depois no Paulino Carlos: participar da salada musical, que ia de Chico Buarque, Caetano Veloso e Roberto Carlos até Odair José e Jane e Herondy.
A maioria dos radiojornais e programas tinham improvisos, alguns quando possível eram editados. Impossível esquecer o “Informativo Progresso”, apresentado pelo Vicente Camargo, levado ao ar no começo da noite. Luis Augusto Zoia operava o áudio: “Enquanto lia, o Vicente ficava observando os gestos dos meus dedos indicando os minutos que faltavam para as sete horas da noite quando começava a Voz do Brasil. O horário era milimetricamente seguido. Nunca vi nada igual!” ele me contou.
Afrânio Zambel, no Peça e Ouça, anunciou a concessão da primeira emissora de Freqüência Modulada classe A de São Carlos, mais tarde batizada de Progresso 2 FM.
Na Rádio São Carlos, os radialistas de uma nova geração, como Carlos Galan, Antonio Carlos Tucura, Jonas e Giba, com poucos recursos faziam programações, publicidade, vinhetas no estúdio da própria rádio, com o desafio de dar a qualidade de um tom simétrico ao que se produzia em São Paulo. Quem passou pela Rádio São Carlos no período, diga-se, assombrou-se com o dinamismo de Gisto Rossi.
Já na virada para os Anos 80, ainda com as duas rádios imperando na cidade, o cronista social Aduar Dibo fez um apelo aos proprietários das emissoras, seus amigos Leôncio Zambel (Progresso) e Gisto Rossi (São Carlos) para que criassem novos programas e tocassem mais música brasileira. Zambel respondeu que a emissora de AM tocava 75% de música brasileira e na recém criada FM o índice chegava a 63%. E prometeu aumentar ainda mais a divulgação de música brasileira
Nada melhor para se conhecer a alma de uma cidade do que ter contato com o meio que irmana os moradores, ao relatar entre canções a vida corriqueira onde a desdita de uns e a sortilégio de outros diz respeito a todos.
Como num serviço de alto-falante ampliado, o rádio acolhia quem quisesse procurar um emprego no mercado, saber quem morreu quem perdera objetos. Ou quisesse apenas ficar antenado, saber quais os filmes no cinema, as peças no teatro, parques de diversões, circos, liquidações no comércio entre tantas coisas. Era só ligar e ouvir. Por isso ninguém em casa recriminava quando a mocinha que ajudava minha mãe nos afazeres domésticos cantava em altos brados os hits de Amado Batista.
A Rádio Progresso, do “Capitão” Leôncio Zambel, funcionava no atual prédio do “Primeira Página” na Avenida São Carlos – para onde se mudou depois de ter sua sede na rua Major onde hoje é o Cine São Carlos - e era parada obrigatória das celebridades da época. Gente de rádio da capital, artistas de teatro e televisão, cantores, sempre ancorava por lá.
Os locutores com enorme prestígio perante os ouvintes, gostavam mesmo é do carnaval, quando eram vistos pelo público nas reportagens nos clubes e nos desfiles de rua. A desenvoltura com que circulavam nessas ocasiões era facilitada pelo apoio que recebiam dos dirigentes de clubes, acessíveis aos profissionais do rádio.
Já nos tempos das FMs e do quase absolutismo da TV, o velho rádio AM foi sobrevivendo não só de lembranças, mas da possibilidade de estender as reportagens sem a tirania do tempo e de recuperar músicas que nos levam a alçar voo até outra realidade. Uma realidade que não conseguimos reviver inteiramente, mas que existiu. E, como agora sabemos, continha um aperitivo das delícias e dos horrores de hoje.
FONTE E FOTOS : SITES SÃO CARLOS AGORAPOR CIRO BRAGA
NOTA DO BLOG: Em 1997 foi adquirida pelo Sistema Clube de Comunicação de Ribeirão Preto, o qual mudou o nome fantasia da emissora para Rádio Clube FM.